Encontradas 7 urnas funerárias ancestrais embaixo de uma árvore milenar da Amazônia

Autor: Luiz Veroneze – MTB 9830/PR

A queda silenciosa de uma árvore centenária, no coração da várzea amazônica, abriu caminho para uma das descobertas arqueológicas mais impressionantes da região nos últimos anos.

Em Fonte Boa, município localizado no Médio Solimões, sete urnas funerárias foram encontradas sob as raízes expostas dessa árvore. O achado não apenas surpreendeu os cientistas, mas também reforçou o protagonismo das comunidades ribeirinhas na preservação e no reconhecimento do patrimônio cultural amazônico.

Trata-se de um sítio arqueológico único, localizado no Lago do Cochila, que integra um conjunto de ilhas artificiais ancestrais, construídas com técnicas engenhosas por povos que habitaram essas águas muito antes da chegada dos colonizadores.

A descoberta é fruto da colaboração entre pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e membros das comunidades locais, especialmente a de São Lázaro do Arumandubinha. Juntos, eles desbravaram um dos territórios mais inóspitos da região para desvendar pistas de um ado que insiste em resistir ao tempo.

Segundo a pesquisadora Geórgea Layla Holanda, as urnas são diferentes de tudo o que já havia sido catalogado na região. Com grandes volumes e sem tampas cerâmicas, tudo indica que eram seladas com materiais orgânicos que se decompam ao longo dos séculos. As urnas estavam enterradas a cerca de 40 centímetros de profundidade, provavelmente sob o solo de antigas moradias, o que pode indicar uma relação direta entre a vida cotidiana e os rituais fúnebres desses povos ancestrais.

O material recolhido está agora sendo analisado em laboratório em Tefé, onde fragmentos de cerâmica, engobes e faixas vermelhas intrigam os especialistas. A argila esverdeada utilizada na confecção das urnas é rara e ainda não apresenta conexões diretas com tradições cerâmicas previamente conhecidas, como a Tradição Polícroma da Amazônia. Isso sugere a existência de práticas culturais autônomas e altamente sofisticadas que ainda não haviam sido documentadas.

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Mas o que mais impressiona é o contexto em que essas urnas foram encontradas. As ilhas artificiais do Lago do Cochila foram erguidas com terra e fragmentos cerâmicos, elevando áreas alagadiças para permitir moradia mesmo durante as cheias. É uma forma engenhosa de engenharia territorial, que demonstra conhecimento ambiental profundo e adaptação às condições da várzea. Segundo o arqueólogo Márcio Amaral, trata-se de uma das mais sofisticadas formas de manejo de paisagem da Amazônia ancestral.

urnas 1

Esse trabalho só foi possível graças ao envolvimento direto da comunidade local. Walfredo Cerqueira, manejador de pirarucu, foi quem identificou inicialmente a presença das urnas, após receber fotos de moradores que viram fragmentos de cerâmica nas raízes da árvore tombada. A partir disso, o padre Joaquim Silva entrou em contato com o Mamirauá, articulando o início da expedição arqueológica.

A escavação, no entanto, exigiu soluções logísticas inéditas. Como as urnas estavam a mais de três metros do chão, suspensas nas raízes da árvore e dentro de uma estrutura elevada, os próprios comunitários construíram uma plataforma com madeira e cipós para viabilizar o trabalho. Foi a primeira vez que a equipe de arqueólogos precisou escavar a partir de uma estrutura suspensa, controlando com precisão o registro estratigráfico com um dátum de elevação.

Essa colaboração interdisciplinar e comunitária revela um novo modelo de ciência: mais aberta, participativa e sensível ao saber local. A experiência em Fonte Boa fortalece a ideia de que os povos tradicionais não são apenas guardiões da floresta, mas também protagonistas na investigação de suas próprias histórias.

As evidências também desafiam a antiga narrativa de que as várzeas amazônicas eram ocupadas apenas de forma temporária. As ilhas artificiais e o tipo de sepultamento sugerem uma permanência mais longa, com estruturas familiares e sociais bem estabelecidas. A relação entre os rituais funerários e o cotidiano reforça a importância simbólica desses espaços, onde vida e morte compartilhavam o mesmo território.

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Por fim, esse achado também contribui para um debate mais amplo sobre a identidade e a memória dos povos originários do Brasil. Cada fragmento de cerâmica, cada pigmento, cada sinal de ocupação é um testemunho de resistência, criatividade e profundidade cultural. E a Amazônia, longe de ser uma terra “intocada”, revela-se cada vez mais como um espaço moldado por civilizações complexas e dinâmicas.

As sete urnas de Fonte Boa, hoje cuidadosamente preservadas em laboratório, são mais do que artefatos arqueológicos. São testemunhas silenciosas de uma história ainda em construção, uma história que pulsa sob a superfície da floresta e que agora começa a ser contada com vozes novas, olhares atentos e respeito pelas raízes de um povo que soube viver em harmonia com a água, a terra e o tempo.

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